A Irmã Glória Cecilia Narvaez Argoty, que esteve quatro anos e oito meses em cativeiro às mãos de um grupo jihadista no Mali, descreve esse tempo de sofrimento no Relatório da Liberdade Religiosa no Mundo que a Fundação AIS divulgou no dia 22 de junho, em Lisboa, na Assembleia da República. Apesar de toda a violência por que passou, a religiosa colombiana diz que “foi uma das maiores bênçãos” que Deus lhe deu em toda a sua vida…
“A 7 de Fevereiro de 2017, fui raptada em Karangasso, no sul do Mali, pelo que mais tarde descobrimos ser um grupo jihadista.” É assim que começa o texto da Irmã Glória Cecilia Narvaez Argoty sobre a experiência terrível de cativeiro que passou no Mali, numa das regiões mais violentas de África. É um dos documentos mais impressivos do Relatório de 2023 sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, publicado pela Fundação AIS e divulgado na quinta-feira, 22 de Junho, na Assembleia da República. Após quatro anos e oito meses de cativeiro, a religiosa franciscana, de ar franzino, seria libertada a 9 de Outubro de 2021. Agora, ao reflectir em tudo o que lhe aconteceu, a Irmã Glória diz, apesar da estranheza que essas palavras possam provocar, que “foi, sem dúvida, uma das experiências espiritualmente mais transformadoras” da sua vida. “Hoje, olhando para trás, embora pareça paradoxal, foi talvez uma das maiores bênçãos que Deus me deu.” Estas palavras, escritas pela Irmã Glória, marcam o Relatório da Fundação AIS. São testemunho na primeira pessoa do que significa a perseguição por motivos religiosos. São a tradução por palavras reais do que foi a vida concreta de uma pessoa, de uma religiosa da Igreja Católica, em cativeiro às mãos de um dos muitos grupos jihadistas que pululam em África.
O poder da palavra
O relatório oferece dados, estatística, apresenta estudos, permite compreender como o mapa da intolerância religiosa tem evoluído, apresenta mesmo outras histórias concretas, mas nenhuma tem o poder das palavras da Irmã Glória sobre a sua vida e cativeiro no Mali. “Comecei a trabalhar neste país africano em 2010. Como religiosa numa região maioritariamente muçulmana, procurei sobretudo as mulheres. E quero chamar a atenção para este facto (trabalhar numa região de maioria muçulmana) porque o carisma de São Francisco de Assis para a minha comunidade religiosa – as Irmãs Franciscanas de Maria Imaculada – dá uma ênfase especial na fraternidade como um dom de Deus.” A Irmã Glória recorda-nos ainda como o carácter fraterno da vida e vivência das religiosas era bem visto por todos no Mali, na região onde a Igreja católica estava presente. Mesmo numa zona predominantemente muçulmana, “não havia portas fechadas nem muros”, descreve a Irmã Argoty. Talvez esse diálogo incomodasse os mais radicais. Talvez essa fraternidade construída entre vizinhos que se davam bem fosse um espinho para os grupos terroristas que só conseguem ver a religião sob o prisma do radicalismo.
Sem liberdade
A verdade é que a Missão Católica das Irmãs Franciscanas em Karangasso foi atacada e a irmã foi raptada por terroristas. E tudo se perdeu nos longos meses, nos quase cinco anos de cativeiro. “Para os meus raptores, nada disso importava”, descreve-nos com palavras ainda cheias de dor a Irmã Glória Narvaez Argoty. “Numa tal situação, a fraternidade que até então tinha sido uma constante no meu trabalho missionário desapareceu. A liberdade, não apenas a liberdade física, que me permitia deslocar-me sem restrições, tornou-se apenas uma palavra, um desejo imenso. Com o passar do tempo, e talvez por causa do que tinha experimentado anteriormente no contacto contínuo, amoroso, respeitoso e amável com pessoas de todas as confissões religiosas e de todas as condições, apercebi-me de que tinha perdido não só a minha própria liberdade, mas também a minha liberdade religiosa: fui perseguida, espancada e insultada por professar a minha fé católica, ou pelo menos por tentar fazê-lo.”
Rezar pelos raptores
O texto do Prefácio ao Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, editado pela Fundação AIS e divulgado na passada quinta-feira em Lisboa a par de várias cidades um pouco por todo o mundo, ganha maior densidade neste momento, quando a irmã relata a sua experiência e como esse tempo robusteceu a sua própria fé. “Apesar de circunstâncias tão adversas, do mau tempo, dos maus-tratos diários, das humilhações, da privação de alimentos e de água, nunca – nem uma única vez – deixei de agradecer a Deus por me ter permitido acordar e estar viva no meio de todas as dificuldades e perigos: ‘Como poderia não te louvar, abençoar e agradecer, meu Deus? Porque me encheste de paz perante os insultos e os maus-tratos!’”, escreve a religiosa colombiana. E confidencia-nos que durante todo o tempo rezou sempre, e continua a rezar, pelos seus raptores. “Mesmo quando me batiam sem motivo, ou simplesmente porque estava a rezar, dizia para comigo: ‘Meu Deus, é difícil estar acorrentada e ser espancada, mas vivo este momento tal como mo apresentas… E, apesar de tudo, não gostaria que nenhum destes homens (os meus raptores) fosse ferido’.” A irmã escreve ainda sobre a importância de se respeitar os outros, como medida essencial e incontornável para a paz entre religiões. “Com o meu trabalho missionário num ambiente muçulmano e partilhando uma boa parte do meu cativeiro com duas mulheres, uma muçulmana e outra protestante, aprendi que, se nos amarmos, aceitarmos e respeitarmos uns aos outros, podemos viver como irmãos e irmãs, e que a aceitação não significa renunciar às nossas crenças, pois o verdadeiro respeito consiste em ouvir, acolher e reconhecer cada um por aquilo que é.”
PA | Departamento de Informação da Fundação AIS