Por necessidades estratégicas de defesa, todas as cidades antigas eram cercadas de muralhas com torres de proteção, portas de controlo e friestas de vigilância. Também nas casas havia trancas com que se aferrolhavam portas e janelas. Dentro das cidades amuralhadas e das casas trancadas, havia a sensação de segurança e de tranquilidade. A cidade era o lar comum, o lar era a casa de cada família e a casa era o espaço da intimidade, do silêncio, da paz, da individualidade. Quaisquer ruídos exteriores eram sinais de alarme; e o ouvido atento distinguia e descortinava, para o que desse e viesse, os que eram apelos à ajuda e generosidade e os que haviam de ser evitados por serem prejudiciais ao sossego, à segurança e à felicidade. Mas tudo mudou com o evoluir normal da civilização. A utilização de armas sofisticadas tornou inócuas e desnecessárias as muralhas; e a utilização das tecnologias audiovisuais escancarou as portas e as janelas aos ruídos lúdicos, aos informativos e aos deformativos. As seguranças de hoje já não são as de antigamente. E os apelos, vindos de quem precisa, são iguais a todos os ruídos a que somos indiferentes. Perdeu-se a capacidade de fazer silêncio, de criar intimidade. Hoje vive-se a maior parte do tempo fora da casa material em que se diz que se habita. A casa ainda poderia ser o último remanso de silêncio, mas qual quê! Até nas poucas horas que nela se está, estão destruídas as zonas de silêncio, os espaços de intimidade. Entra-se nela por pouco tempo e ainda esse pouco tempo é roubado pelos sofisticados móveis tecnológicos aí colocados que nos atiram novamente para fora – a televisão, a rádio, a internet, o telemóvel. Em obediência ao progresso, tudo está bem conjugado para não termos tempo de pensar, de entrar dentro de nós. Retirados do centro da nossa consciência, nós, que somos conduzidos a partir de fora, onde podemos ir dar? O suicídio, a droga, a frustração existencial – a nível pessoal – e a ameaça do holocausto nuclear – a nível social – são bem esclarecedores da gravidade deste problema, deste desafio inquietante. Há por aí tantos filhos a quem os pais dão tudo o que acham ser necessário para crescerem fisicamente e se desenvolverem inteletivamente, mesmo que fiquem raquíticos e anões por dentro, sem vontade para nada, sem capacidade para resistir ao mais pequeno embate, candidatos à droga, ao álcool, ao suicídio. Sem valores de carácter, portanto! Sem ‘interior’, sem alma, ficam à mercê de respostas penúltimas e relativizantes, expressas em valores passageiros que os bens materiais tão bem sabem encobrir. E o pior é que se lhes dá o incentivo ao consumismo de tudo o que vai parar, mais cedo ou mais tarde, à mesma lixeira onde vai parar tudo o que se usa e descarta. Hoje continuamos vítimas da mentalidade criada na segunda metade do século XX em que, seguindo modelos importados e infetados, foram destruídas as muralhas que davam segurança ao nosso carácter; e, sem preocupações na sua substituição, deixámos entrar na nossa “casa”, por fissuras irreparáveis, todas as influências e ruídos exteriores, julgando que estávamos a diminuir as preocupações interiores.

Manuel Maria Madureira, diretor

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