Entrevista ao Arcebispo de Évora, D. Francisco José Senra Coelho e ao Presidente da Comissão Arquidiocesana de Proteção e Segurança de Menores e de Adultos Vulneráveis, cónego Silvestre Marques
Entrevista ao Arcebispo de Évora, D. Francisco José Senra Coelho
e ao Presidente da Comissão Arquidiocesana de Proteção e Segurança de Menores e de Adultos Vulneráveis (CPSMAV – Arquidiocese de Évora), cónego Silvestre Marques:
“SOMOS UMA IGREJA QUE PROCURA A VERDADE E NA VERDADE QUEREMOS PERMANECER”
“a defesa” – Sente-se uma grande preocupação por parte da Igreja Católica de dar uma resposta eficaz à questão da Proteção e Segurança de Menores e de Adultos Vulneráveis, tendo surgido para além da Comissão Arquidiocesana, uma Coordenação Nacional, e ainda uma Comissão Independente. Centrando nos objetivos principais, o que se pretende com estas medidas?
D. Francisco José Senra Coelho – A nossa grande preocupação visa garantir que todos os cristãos tenham a consciência de que a Igreja procura a verdade.
A verdade dos factos tem a ver com a própria libertação, ou seja, a partir dessa verdade nós temos a consciência da realidade e o apelo da conversão. Só viveremos como comunidades autênticas quando estas experimentarem a verdade. Pois a verdade liberta. E a liberdade advém de um ambiente de verdade.
Por isso, a Igreja não assume, de modo algum, a acusação, que às vezes surge, de que encobre, esconde e que tem receio de que se saiba. Essa não é a vertente que a Igreja do nosso século XXI assume culturalmente. Aliás, as situações têm de ser lidas no seu tempo como uma expressão concreta da história e da evolução cultural da sociedade de cada época. Nós, hoje, somos intolerantes para a mentira, não convivemos com o opaco. E, por isso, como Igreja fazemos parte do nosso tempo e temos a mesma vontade de verdade que todos os que amam a verdade têm.
As Comissões têm, sobretudo, uma preocupação de salvaguardar a dignidade das vítimas, no caso de terem existido situações que provocaram vítimas, e de proporcionar, o mais possível, o cuidado, o conforto e a possibilidade de elas se reencontrarem. Que não vivam no silêncio e na sombra, mas que possam fazer o percurso da libertação, da escuta e de uma entreajuda de partilha de vida, naquilo que a Igreja possa proporcionar em todos os meios ao seu alcance. Na sua recuperação psicológica, afetiva, na sua alegria de viver. Assumindo a Igreja essa responsabilidade de ajudar, em verdade e em consciência, todos os que foram atingidos pela realidade em que estão.
Em primeiro lugar, gostava muito de salientar a “paresia”, uma frase que o Papa Francisco utiliza, de origem grega, e que significa abrir o coração até ao mais profundo das entranhas. Que haja este lugar de acolhimento na Igreja para todos os que precisam porque se sentem sós no meio de muita gente. Sabemos que hoje a solidão é imensa. E a solidão, fruto de uma violação ainda em menor, fica como marca para toda a vida. Portanto é necessário que haja esta paresia.
Em segundo lugar, temos de fazer, com muito afinco, uma prevenção para que não volte a acontecer. E essa prevenção passa por muitas dinâmicas de atenção, de consciencialização, mas também de formação.
Por isso, este é o terceiro ponto, a formação dos próprios membros da Igreja é importante. Essa formação não é só ao nível do conceito do direito humano, da integridade pessoal, pois os agentes pastorais têm uma formação ética e moral superior, mas é sobretudo na própria atitude que temos de assumir de prevenção, precaução e prudência. Porque, muitas vezes, também se é vítima de atitudes que não são claras, que podem ser imprudentes ou dúbias e que podem gerar o equívoco e daí a possibilidade de uma afirmação hipotética, mas não fundamentada.
Por outro lado, é necessário consciencializar a atenção que se há de ter para com todos os sectores da pastoral, sobretudo os que tocam no acolhimento dos menores e dos adultos vulneráveis, sejam sectores com grande cuidado e atenção a todos aqueles que vão prestar o seu serviço. Por isso, deve existir uma atenção muito grande na seleção das pessoas e uma triagem atenta. Estou a pensar na catequese, no escutismo, nas instituições sociais de ATL, Jardim de Infância e até de creche… Situações que temos de cuidar em tudo o que são movimentos juvenis, em atividades de passeio, de acampamento… Temos de programar, não prescindido deste aspeto. Talvez não estivéssemos tão atentos. Era um assunto que não entrava na agenda. Não fazia parte dos cuidados. Transversalmente, hoje somos interpelados para este cuidado.
A Igreja quer, de facto, sentir com os seus responsáveis esta preocupação de cuidar da segurança através de uma boa formação. Por isso, neste mês de maio, nas reuniões do Clero nas três zonas pastorais da Arquidiocese de Évora, o Departamento da Formação do Clero teve o cuidado de convidar o cónego Silvestre Marques, presidente da Comissão Arquidiocesana de Proteção e Segurança de Menores e de Adultos Vulneráveis, para fazer um diálogo com o Clero – com os presbíteros e os diáconos. E esta ação de formação e de prevenção vai ser estendida às Catequeses, às Instituições da Igreja, a Movimentos Juvenis para promover, cada vez mais, uma cultura da segurança e do respeito.
Sabemos que é um desafio que não é apenas da Igreja, mas a Igreja sente a missão de ser um sinal. Queira Deus que este sinal seja captado por toda a sociedade porque a pedofilia e a violação de pessoas vulneráveis não é um problema exclusivo da Igreja, longe disso. Que seja um alerta para uma sociedade que tem de meter na sua agenda, com mais acuidade, esta temática que nos envolve a todos. Somos todos protagonistas. Todos somos educadores. E todos somos responsáveis pela segurança que deve existir na casa comum que todos habitamos.
“a defesa” – A Comissão Arquidiocesana de Proteção e Segurança de Menores e de Adultos Vulneráveis já foi criada há três anos, mas recentemente foi reforçada…
Cónego Silvestre Marques – Sim. Nós começámos o trabalho com um núcleo mais restrito, embora mais especializado. Com uma pessoa com larga experiência do campo da magistratura e do direito. Com uma professora universitária da área da psicologia, com grande capacidade de compreensão da problemática em todas as suas dimensões. Com uma pessoa, já aposentada, na área da Polícia Judiciária, que tem uma longa experiência na investigação e no conhecimento desta realidade.
Ultimamente, dois novos membros integraram a Comissão, nomeadamente, um advogado que tem experiência de trabalho com estes casos. E, ainda, uma pessoa que toda a vida trabalhou na área da educação, tendo trabalhado com adolescentes e jovens.
Entretanto, em Fátima, em fevereiro passado, houve uma reunião, a nível nacional, onde marcaram presença todas as Comissões Diocesanas e na qual foi escolhida uma Comissão Nacional para ajudar as Comissões Diocesanas a organizarem-se melhor, a definirem melhor as suas linhas de ação, os seus procedimentos, as suas relações com o problema e com as Instituições que operam neste campo.
Por isso, a Comissão Arquidiocesana fez recentemente o seu alargamento e já difundiu no site da Arquidiocese de Évora, em www.dioceseevora.pt, os seus meios de contato, quer através de um endereço eletrónico (comissaopmavevora@gmail.com) quer através de um número de telemóvel (924 006 620), para que as eventuais vítimas ou pessoas interessadas possam denunciar ou falar de situações que são do seu conhecimento ou, infelizmente, da sua experiência.
Também desde o início do ano que já partilhámos no site da Arquidiocese os contatos da Comissão Independente, que tem um papel importantíssimo porque torna a Igreja ainda mais responsável, para que não subsistam dúvidas de que a intenção da Igreja é dar voz ao silêncio, ao sofrimento, ao escondimento de muitas destas situações.
Por isso, em perfeita sintonia com esta Comissão Independente e com a Comissão de Coordenação Nacional, a Arquidiocese tem-se mobilizado ultimamente para criar melhores e mais adequadas condições para responder a este problema.
Quem ligar para o número disponibilizado pela Comissão Arquidiocesana terá uma resposta de imediato que canalizará o pedido da pessoa para quem for mais adequado, de forma a que seja dada uma resposta eficaz e com a maior isenção.
O endereço eletrónico também é um meio importante, na medida em que todos os pedidos devem ser reduzidos a escrito e devem ser ocasião de se poder conhecer com toda a confidencialidade para salvaguardar o bom nome e a dignidade de todas as pessoas envolvidas.
“a defesa” – Deste modo, atualmente em Portugal, no terreno estão a trabalhar as Comissões Diocesanas, a Comissão Independente e a Coordenação Nacional…
Cónego Silvestre Marques – Exatamente. São estes os três grandes instrumentos que estão no terreno e que permitem a organização mais eficaz a nível das comissões diocesanas, sendo que cada uma tem o seu campo de atuação, havendo uma colaboração recíproca e um facilitar da parte de todos.
Penso que podemos considerar que já estamos em “velocidade de cruzeiro” para podermos garantir que, o mais rápido possível, seja dada esta garantia às pessoas, ou seja, que tenham voz.
“a defesa” – Qual a atitude que cada cristão deve assumir perante este desafio que a Igreja, de modo transparente e responsável, realiza neste momento?
D. Francisco José Senra Coelho – Temos a responsabilidade de proporcionar uma Igreja segura. E é uma responsabilidade transversal a todos nós. Cada cristão é convidado a dar o seu contributo à segurança que nós queremos apresentar com a toda a realidade.
Percebemos que vivemos um tempo marcado por muitas inseguranças. Estamos a viver ainda os restos da pandemia, temos neste momento uma guerra inesperada no século XXI. E a temática da segurança volta de um modo quase obsessivo. A corrida ao armamento, situações de pensar que é pela guerra que se resolve a guerra… Não.
A limpidez do coração faz acontecer o mundo novo. Um mundo novo nasce no coração do homem. Só temos um mundo novo quando temos um coração novo.
Um coração novo é essencialmente aquele que é fraterno, que vive a ágape, ou seja, a refeição da partilha, da dádiva, da entrega de si mesmo. E este serviço, que tem a ver com a palavra pai e mãe, está no coração de todos os seres humanos como homens e mulheres, como jovens que se sentem irmãos. É necessário que todos os cristãos adquiram esta consciência para que, de facto, haja uma confiança muito grande na Igreja.
Portanto, na Igreja, depois da segurança, deve existir confiança. A confiança de que a criança que vai às atividades da paróquia está no sítio mais seguro porque cada cristão é um anjo da guarda, é uma pessoa que sente a responsabilidade pelo bem dessa criança ou dessa pessoa adulta vulnerável.
A segurança já passou por muitas dimensões, como retirar obstáculos para pessoas com dificuldades motoras ou a introdução da linguagem gestual para que os surdos possam participar na Eucaristia. Contudo, agora, é necessário estender a segurança a esta nova questão que é tão velha como o homem, mas que a sensibilidade a trouxe agora de um modo diferente à atualidade.
Por isso, o apelo que faço é que nos sintamos todos corresponsáveis e construtores da segurança na Igreja. Evidentemente, se encontrarmos uma pessoa que se sente como que amordaçada com um nó que lhe aperta a vida e não consegue desatá-lo, devemos ajudá-la a dirigir-se à Comissão Diocesana, que é de índole pastoral e que procura dar respostas concretas.
Sublinho que todas as Comissões Diocesanas estão ao serviço, ou seja, uma pessoa de Évora pode recorrer a outra Comissão Diocesana de outra zona do país se, porventura, tem algum receio de sigilo. Está tudo ao dispor. O importante é que ajudemos a pessoa a abrir-se e a sair da sua escuridão.
Gostava que tivéssemos uma atenção grande neste aspeto: se alguém se abre comigo, é importante que encaminhemos essa pessoa para alguém que a possa ajudar de modo mais preparada e com todas as dimensões que possa necessitar.
É muito importante dar um grande apoio aos sacerdotes. Gostava de convidar cada pessoa a colocar-se na pele de quem ao aparecer publicamente sabe que pode ser visto como suspeito de ser pedófilo. E isto acontece com muitos sacerdotes, que ao chegarem a algum sítio onde não são conhecidos mas que ao serem identificados como tal, sentem a desconfiança, a dúvida sobre a sua identidade e a sua dignidade. Isto é muito difícil. Portanto, é preciso calçar os sapatos do outro. O Sacerdote vive momentos, por vezes, desta dor profunda, de uma dúvida que passou por uma dimensão imprópria, ou seja, confundiu-se a árvore doente com a floresta bela e viçosa.
Temos um presbitério ao serviço, belo e viçoso. E, porventura, se há algum caso, mesmo que não seja confirmado, tendemos a generalizar as situações. Há sacerdotes que se sentem mais desanimados, no sentido de que têm o direito à confiança como pessoas e muito mais pelo testemunho que dão como padres. Por isso, os cristãos devem ter uma atenção especial para com os seus padres neste momento.
Lembro que a Pastoral das Vocações também passa por aqui. Um jovem que queira ser presbítero, se se encontrar numa comunidade onde não há clareza neste assunto e se vive em dúvidas ou hipóteses de suspeita, essa pessoa sai, porque tem de ter um encontro no seu desejo de ser padre com a comunidade.
Portanto, queria abraçar todos os cristãos de Évora nesta Arquidiocese onde até ao momento não tivemos nenhuma comunicação. Os próprios meios de comunicação fizeram a sua investigação e não encontraram nenhum caso relacionado com a Arquidiocese de Évora.
Em relação ao Clero da Arquidiocese de Évora queremos deixar este esclarecimento, que é verdade, de que até agora não houve qualquer caso.
Quero dar um abraço a todas as mães e a todos os pais, a todos os catequistas, a todos os dirigentes do CNE, a todos os animadores da pastoral.
É importante sentirmos confiança uns nos outros e darmos a força da confiança uns aos outros para que vivamos de um modo saudável e possamos ser testemunhas da esperança e da alegria.
Somos uma Igreja que procura a verdade e na verdade queremos permanecer.
Texto de Pedro Miguel Conceição/jornal “a defesa”