As leituras da Eucaristia do domingo passado tiveram ecos diversificados sobre o seu sentido e oportunidade, justamente lidas no contexto vivo e atual das perspetivas preocupantes da situação das mulheres no Afeganistão. Sem entrar em polémicas, é preciso ver com atenção alguns aspetos da leitura de São Paulo, procurando fazer justiça ao sentido do texto.

Antes de mais, é preciso olhar o texto na sua inteireza, para se dar conta do seu sentido no próprio contexto. Por isso, aqui fica a primeira parte do texto que foi lido, que diz respeito ao tema em questão, tirado da Carta aos Efésios:

“Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu Corpo, do qual é o Salvador. Ora, como a Igreja se submete a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos maridos. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela… Assim devem os maridos amar as suas mulheres, como os seus corpos. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. Ninguém, de facto, odiou jamais o seu corpo, antes o alimenta e lhe presta cuidados, como Cristo à Igreja; porque nós somos membros do seu Corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe, para se unir à sua mulher, e serão dois numa só carne. É grande este mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja.”

Tenha-se em conta que Paulo se situa no contexto legal do direito familiar romano, que concedia melhores direitos às mulheres do que a maioria das culturas da época, mas que não deixava de pôr em relevo o papel do marido como “pater familias – pai de família”, como titular da família no seu conjunto e garantia dos direitos e deveres de cada um e o seu funcionamento relacional e social. Este quadro permaneceu nas gerações sucessivas, concretamente no direito português, até há pouco tempo. Paulo não põe em causa o direito romano, mas dá-lhe uma interpretação nova, à luz de Cristo, “Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo”, que Ele ama até dar por ela a vida.

O que causa “escândalo”, nos dias de hoje, é o conceito de “submissão” proposto à mulher. Não se trata, porém, de algo exclusivamente aplicada às mulheres, mas a todos. A leitura começa precisamente por dizer: “Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo.” Em Paulo, esta submissão não significa menor importância ou subserviência, mas o dar prioridade aos outros, como forma de atenção e cuidado; não centrar a vida e o pensar em si próprio, mas no amor que deve regular todo o relacionamento entre pessoas.

Paulo aplica este quadro jurídico-social à instituição familiar, como princípio da mútua atenção e cuidado, afirmando duas coisas. Em primeiro lugar, dê-se o devido cuidado e prioridade (submeta-se) à relação familiar que tem como representante social o marido, na sua relação com a esposa. Este princípio básico, que se aplica à mulher, mas igualmente aos outros membros da família, é completado com aquilo que o “pai de família” representa: o amor, antes de mais aplicado ao amor entre os esposos: “Maridos, amai as vossas esposas, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela”.

Esta proposta, necessariamente complementar à que é dirigida à mulher, deve ser vista com duas perspetivas que aclaram todo o texto. Primeiramente, o “amor” e a “submissão” não se aplicam apenas a um dos esposos, mas são a lei básica do relacionamento humano, segundo o Evangelho: “Saberão todos que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros.” Em segundo lugar, a medida do amor é reportada a Cristo, que “amou a Igreja e Se entregou por ela”.

É à luz de Cristo que se entende a dimensão do amor, até à total entrega e ao dom da vida por aqueles que se ama. E é também essa a norma para a correta interpretação de qualquer autoridade, representatividade ou primazia. Não se trata de mandar submeter ou depreciar ninguém, mas de cuidar e dar prioridade no dom e no serviço do dia a dia. Na perspetiva de Jesus, bem presente em Paulo, a liderança é serviço e dom de si mesmo, pois Ele veio “não para ser servido, mas para servir e dar a vida”. O verdadeiro exemplo e medida de submissão e de serviço, como dom e amor, é o próprio Jesus, para os esposos e para qualquer outro membro da família e da Igreja.

Dito isto, pode-se dizer: então porque não se muda o texto, para que não se deem interpretações incorretas? A pergunta tem a sua razão de ser, mas é claro para a Igreja e para quem quiser interpretar textos e tradições com origem noutras culturas e noutros tempos: os textos não se mudam, mas educam-se os leitores a entendê-los e a atualizá-los. Por exemplo, não se mudam os versos épicos de Camões, porque não correspondem à mentalidade atual e até, em alguns casos, podem causar escândalo. Isso seria cair na arbitrariedade e na ditadura das modas e na imposição da cultura única. É por isso que se estuda Camões nas escolas, para que todos tenham acesso à beleza dos seus versos, dentro dos condicionalismos da sua época.

A Palavra de Deus permanece viva e atual e é importante que seja escutada sempre com a sua sonoridade original. O próprio Jesus deu o exemplo de leitura ao relê-la e reinterpretá-la à luz da nova realidade que era Ele próprio e a situação daqueles a quem se dirigia. Conservar a Palavra de Deus e a Tradição é continuar a fazê-las soar em assembleias vivas, como as pautas de música dos grandes autores, constantemente atuais, porque continuam a alegrar corações, a criar sonhos e a gerar estéticas novas, cada vez que se executam.

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