NO LIMIAR DO RISCO E DA CONFIANÇA:

 

Vivemos tempos de Vigilância

 

Qualquer referência ou reflexão que possamos fazer nos tempos que vivemos poderá dar a sensação que se corre o risco de “chover no molhado”, pois o presente ano mergulhou numa espiral temática em torno da Covid-19. Na verdade, os sofrimentos, os desafios, os perigos e as perdas que sofremos são motivos justificados e compreensíveis para que, diante deste tormento pandémico, se multipliquem as opiniões, as críticas, as ilusões, algumas intolerâncias e também as pseudo-soluções.

Ainda que se multipliquem muitos discursos sobre a actual Pandemia, creio que é necessário ter a sensatez e a prudência de confiar aos investigadores a solução terapêutica, aos médicos e profissionais de saúde os cuidados hospitalares, às autoridades governamentais a logística e as medidas necessárias para a salvaguarda do bem comum e da saúde pública, às autoridades militares e policiais o respeito pela sua missão de serviço pela ordem pública, e a tantos profissionais que arriscam todos os dias nas diferentes áreas do trabalho humano a maior gratidão pela redobrada competência. O motivo que me leva a fazer esta afirmação prende-se com o facto de, após o período crítico do Estado de Emergência ter passado, parece que o regresso a uma fictícia normalidade provocou uma amnésia colectiva das vidas que se perderam, do sacrifício feito por tantos profissionais e seus familiares, das limitações a que estivemos sujeitos e, sobretudo, do valor que recuperámos sobre tantas dimensões da vida. É por este motivo que não ouso ingerir no profissionalismo e no esforço de tantos portugueses, mas desejo relembrar o que construímos durante o primeiro surto pandémico, sobretudo no que diz respeito aos territórios do Alentejo e Ribatejo que constituem a Arquidiocese de Évora da qual sou Arcebispo.

Durante o período de confinamento era habitual ouvir dizer que tudo ia ser diferente após a esta crise sanitária, chegando ao ponto de alvitrarmos que teríamos a oportunidade de construir algo mais belo e melhor. Sem qualquer pessimismo, creio que a aprendizagem foi de “pouca duração”, pois ao final de um mês e meio de retomarmos paulatinamente as nossas vidas, assistimos a incompreensíveis ondas de intolerância, violência e vingança cultural. Da mesma forma, o país que lutou incansavelmente por salvar a todo o custo as vidas humanas assiste agora à insensata agenda política de alguns que cismam em ser profetas da morte pela eutanásia. Para encimar tanta insensatez, tomamos conhecimento da incapacidade social para continuar a saber conviver de forma vigilante e combativa ao vírus que não nos dá tréguas, sobretudo com comportamentos de risco que nos deixam, à hora de fecho desta edição, em total estado de alerta para este segundo surto que se avizinha e parece não ser nada inofensivo.

Face ao que exponho, pergunto-me se realmente aprendemos alguma coisa com o que vivemos? Será que os sinais dos tempos actuais não nos aperfeiçoaram na humanidade? Será que as vidas perdidas e os esforços empreendidos não nos transformaram o coração e nos concederam uma prudente responsabilidade? Creio que, diante dos dados preocupantes que nos chegam, não podemos permitir que um novo surto volte sem atender às sábias palavras do Papa Francisco, no passado dia 31 de Maio, dirigidas aos sacerdotes de Roma: «esta nova fase que iniciamos requer de nós sabedoria, prudência e compromisso comum, para que todos os esforços e sacrifícios, feitos até agora, não sejam inúteis». Estas palavras não podem ser esquecidas, mas sobretudo gravadas na nossa mente em cada gesto e em cada decisão que tomamos, porque as perdas e as condições a que estivemos sujeitos roubaram milhares de vidas, roubaram muitos sonhos e projectos, isolaram muitos idosos e doentes, lesaram muitas famílias e, diante dos estudos macroeconómicos apresentados, irão deixar no desemprego e na pobreza muitos irmãos e concidadãos nossos.

A Pandemia que ameaça o mundo e, de uma forma particular, volta a ameaçar as populações da Arquidiocese de Évora, não se circunscreve a um problema médico, mas é uma ameaça gigante que está a ameaçar a vida pessoal de cada cidadão, o bem estar das famílias, a prosperidade da geração mais jovem, a dignidade dos mais idosos, o equilíbrio social, a ordem pública, a credibilidade das instâncias de governo e, no fundo, a abrir brechas que necessitam de ser saradas com inteligência, rigor, determinação e sensatez. E esta responsabilidade não se pode atribuir apenas aos governantes, mas estamos diante de uma responsabilidade que é de todos e que tem como princípio básico «Não cantem vitória, cumpram as normas que ajudam a evitar que a epidemia avance», apelo feito pelo Papa Francisco, no Angelus do passado Domingo, 07 de Junho.

Na verdade, por vezes há a tendência de ter comportamentos díspares, como ainda agora assistimos: do confinamento absoluto passámos para os ajuntamentos irreflectidos. E esta incapacidade de encontrar um ponto de equilíbrio agrava a recuperação da normalidade que ansiamos. Não podemos permitir que o mundo volte a parar para nos refugiarmos do coronavírus, mas também não podemos arriscar as nossas vidas e as dos que nos rodeiam. É neste sentido que, a retoma da normalidade da vida tem de ser feita, tal como nos refere o Papa, dentro do quadro normativo que está estabelecido. É também neste sentido que apelo a esta aprendizagem nova a que estamos sujeitos, em que retomamos o culto comunitário de forma responsável e atentos às normas, e que as nossas celebrações comunitárias sejam espaços e momentos educativos proactivamente ao serviço da solução face à Pandemia e nunca da imprudência.

Se a prudência e a responsabilidade for o nosso critério então é possível viver na confiança e na esperança, sobretudo porque esta Pandemia permitiu a muitos regressar à confiança que a fé nos ensina. Se é verdade que parece que alguns não aprenderam muito com estes tempos atípicos, também é verdade que muitos de nós reformulámos muitos aspectos da nossa vida, da nossa sensibilidade e, sobretudo, da nossa intimidade com Deus. Por isso, o Papa exortava-nos «logo que vos seja possível, voltai à adoração e à comunhão do Corpo do Senhor na Missa de preceito. É a graça da Páscoa que frutifica na Eucaristia e que torna fecunda a nossa vida». Na verdade, os tempos que vivemos permitem-nos reler a nossa vida, descortinar os sinais dos tempos e, relembrando as palavras do Santo Padre, a redescobrir que «a hóstia consagrada encerra em si a pessoa de Cristo: somos chamados a procurá-lo diante do sacrário, na igreja, mas também no tabernáculo que são os últimos, quem sofre, as pessoas sozinhas e pobres».

O período que vivemos não são tempos de vitória de uma guerra, mas tempos de vigilância em cada batalha. Portanto, aquela comunhão fraterna que vivemos durante o tempo de confinamento deverá ser agora o segredo que nos ajudará a vigiarmos na segurança, a cumprirmos as normas, a sermos solidários com quem mais precisa e, obviamente, a recuperar as oportunidades que perdemos de poder sondar e viver confiados e cuidados pela ternura e pelo Amor de Deus.

 

+Francisco José Senra Coelho,

Arcebispo de Évora

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